CLT não trata do assunto, enquanto Código Penal vê crime apenas quando perpetrado por superior hierárquico
O enfrentamento ao assédio sexual no ambiente de trabalho passa por penas mais duras, uma lei trabalhista que puna as empresas e a obrigação da criação de políticas de prevenção e combate aos diversos tipos de violência a que as mulheres estão sujeitas.
A avaliação é da promotora de Justiça Gabriela Manssur, da Ouvidoria das Mulheres do Conselho Nacional do Ministério Público, que atuou em casos de grande visibilidade, como nas denúncias contra o ex-chefe do departamento de humor da Globo, Marcius Melhem, e contra o médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus.
Nos dois anos desde a criação da Ouvidoria das Mulheres, Manssur diz ter recebido 1.900 denúncias de violências contra a mulher, um aumento de 80% ante ao que a ouvidoria comum registrava até então.
No projeto Justiceiras, uma rede multidisciplinar de atendimento a mulheres vítimas de violência idealizado por Manssur, entre 31 de março de 2020 e 31 de janeiro de 2022, 8.390 denúncias foram registradas –não há separação por tipo de violência, se doméstica ou no trabalho, por exemplo.
A publicidade de casos como os de Melhem e João de Deus ajuda a impulsionar os números porque vítimas e testemunhas se sentem mais seguras para falar, avalia a promotora.
“O que percebo é que o tema tem sido mais falado por conta dessas denúncias de mulheres em ambientes de trabalho. Ainda é baixo [o número de ações judiciais e denúncias] porque a mulher tem dificuldade na produção da prova. Fica a palavra dela contra a palavra de alguém mais importante”, diz.
Hoje, a legislação trabalhista não trata do assunto. O crime de assédio sexual é previsto no artigo 216 do Código Penal, que prevê penas de um a dois anos de detenção. O texto da lei também define a questão do assédio como a tentativa de obter vantagem ou favorecimento sexual perpetrada por um superior hierárquico.
Para a advogada Tainã Góis, da Rede Feminina de Juristas, essa limitação já é, sozinha, um sinal do atraso do repertório legal de enfrentamento ao assédio.
“Só considera o assédio de superior, quando ele acontece de diversas formas, entre colegas do mesmo nível, ou a partir de um subordinado”, diz. “É uma legislação toda muito atrasada.”
A pena de até dois anos, que pode ser ampliada se a vítima for menor de 18 anos, também é um problema, na avaliação da promotora Gabriela Manssur. Ele defende ainda que haja uma legislação trabalhista específica para tratar do assédio sexual e que inclua as empresas em duas frentes.
Uma é na responsabilização objetiva, na qual a empresa fique obrigada a indenizar a trabalhadora e a garantir o vínculo de emprego da vítima que denunciou. Em outra frente, que as empresas criem o que ela chama de “compliance feminino”, a partir do qual sejam construídas políticas institucionais de atendimento, com treinamento de equipes e criação de protocolos.
“Se houver assédio, a empresa precisa ter um protocolo, uma sequência de trâmites que sejam adotados imediatamente”, afirma Manssur. “Hoje, poucos casos chegam ao Ministério Público por que as empresas seguram, fazem de tudo para abafar.”
Na Justiça do Trabalho, em 2021, houve um aumento de ações trabalhistas discutindo assédio sexual, na comparação com o ano anterior. Foram 4.690 novas ações no ano passado, 4.262, em 2020, e 4.786, em 2019.
Gois, da Rede Feminina de Juristas, considera o número baixíssimo e diz que “nem de longe” corresponde à realidade do mercado de trabalho. Ela acredita que a regra de honorários alterada pela reforma trabalhista também desestimula o início de ações.
“As mulheres já têm medo de denunciar e ainda correm o risco de ter que pagar o advogado da outra parte. Além disso, falta especialização nas bancas de advogados para lidar com essas ações, porque são casos difíceis de comprovar. O assédio entra nos direitos extrapatrimoniais, nos quais a prova é subjetiva”, diz.
A advogada lembra ainda que, na Justiça do Trabalho, a funcionário ou funcionário que se sentiu assediado sexualmente vai cobrar a responsabilização da empresa pela omissão em coibir esse tipo de comportamento ou por manter um ambiente sem proteção.
A vítima também pode processar individualmente o sujeito que praticou o crime nas esferas cível e criminal. Segundo a promotora da Ouvidoria das Mulheres, para casos ocorridos a partir de 2018, o Ministério Público também pode processar o autor do assédio sem que a vítima tenha registrado boletim de ocorrência ou apresentado denúncia.
Para Gois, o caso de Melhem –oito mulheres formalizaram denúncias contra ele– é um exemplo prático do que as mulheres vivem em seus ambientes de trabalho. “A gente lida muito com o assédio sexual como se ele fosse uma questão individual, mas a gente não lida muito com o assédio sistêmico, que vem da cultura das empresas”, afirma.
As denúncias de assédio, segundo a advogada, costumam ter pontos em comum. Há elogios às roupas e ao corpo da funcionária ou, ainda, tentativa de rebaixar a funcionária por características físicas, na comparação com outras mulheres do mesmo ambiente.
“Há ainda o assédio mais caricato ou explícito e aquele em que a mulher fica sob risco de perder um cargo ou uma promoção se recusar o jogo de sedução, o convite para almoçar.”
Fonte: Folha de São Paulo