Sabrina passou em primeiro lugar, mas foi reprovada na fase de inspeção de saúde
A 19ª Vara Federal do Rio de Janeiro determinou que a Marinha permita que uma candidata trans participe do processo seletivo para ingresso no curso de formação de oficiais. Embora tenha passado em primeiro lugar no concurso público, Sabrina, 33, que preferiu não ter o sobrenome divulgado, foi considerada inapta para o cargo na fase de inspeção de saúde. A justificativa apresentada foi uma deficiência em hormônios sexuais.
Em decisão proferida nesta segunda-feira (4), a Justiça acatou pedido de suspensão de inaptidão da candidata. A sentença aponta que a inspeção de saúde foi baseada “em suposta deficiência de saúde inexistente (hipogonadismo secundário)” e intima o comando do 1º Distrito Naval do Rio de Janeiro a cumprir a decisão.
Procurado, o comando do distrito naval não se manifestou até a publicação da reportagem.
Como a candidata passou por uma redesignação sexual em 2016, desde então faz reposição hormonal. Sabrina afirma que realizou todos os exames solicitados, e explicou à junta médica que não teria como apresentar outros, como ultrassom transvaginal ou teste de gravidez.
Em vez disso, por determinação da Junta de Saúde da Marinha, apresentou os laudos de sua cirurgia de redesignação sexual, laudo psicológico e diversos exames hormonais para comprovar sua reposição hormonal com estrogênio, com taxas compensadas e dentro dos padrões normais.
“Fiz outros exames solicitados pela minha endocrinologista, ela, inclusive, respondeu a um questionário extenso atestando que a minha saúde está perfeita e que não houve alterações dentro do valor de referência, porém a junta de inspeção nem comentou o laudo da médica”, afirma.
“O hipogonadismo secundário tem relação com a hipófise, e a Sabrina provou, por meio de exames, que sua hipófise não tem qualquer alteração”, diz Bianca Figueira, advogada da candidata e oficial reformada da Marinha.
Na decisão, o juiz federal Dimitri Vasconcelos Wanderley argumenta que a transfobia é considerada crime de racismo, previstos nos artigos 3º e 13º da Lei nº 7.716/1989, com pena de reclusão entre dois e cinco anos. “Qualquer impedimento ao acesso da candidata ao serviço militar mediante concurso, que tenha como fundamento, implícita ou explicitamente, o fato de ser mulher transgênero, configura o crime de racismo.”
Ele diz ainda que a Marinha do Brasil ainda não possui regulamento adaptado para a realidade de participação de homens e mulheres trans em seus quadros. “Esta tardia adequação das normas, mesmo depois da atualização da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a Saúde (CID-10), gera o conflito trazido ao Judiciário.”
Anteriormente, a transexualidade era considerada um transtorno mental e a militar poderia ser reformada (aposentada) da função.
A decisão afirma ainda que impedir que a candidata tenha acesso a um concurso público militar em razão do uso contínuo de medicação hormonal seria vetar o acesso “pelo simples fato de ela existir como se sente, não se ocultando atrás de um personagem para ter aceitação social.”
“A Sabrina não tem nenhuma doença, passou em todas as etapas: prova objetiva, física, apresentou os títulos de graduação em administração, duas pós, artigo publicado e proficiência em inglês. Não há motivo para ela não assumir o cargo”, afirma sua advogada.
A candidata conta que, no total, teve quatro reuniões com as juntas de saúde, que primeiro deram resultado como inconclusivo e, por fim, inaptidão de saúde. “Salvo as consultas terem sido agendadas em dias diferentes, vi os demais candidatos apenas no primeiro dia. Só tinha eu na sala de espera. Como não tenho convênio gastei R$ 3.000 com exames e consultas.”
Para Sabrina, não houve isonomia no procedimento. “Não fiquei surpresa, mas desapontada. Foi um percurso extremamente burocrático e de investimentos com cursinho preparatório, verificação documental, aulas de natação, entre outros, para alguns profissionais de saúde com uma canetada dizerem que você está fora”, desabafa.
“Não faz sentido a alegação de incapacidade, ainda mais porque o meu trabalho será administrativo e uma mulher [cis] que entra na menopausa, por exemplo, não será mais apta? Conhecia o histórico da Marinha e não sei porque tem tanto medo de pessoas trans, só quero trabalhar.”
A candidata se diz satisfeita com a decisão judicial e que, se necessário, entrará novamente com ações para garantir seus direitos. Para ela, se a Justiça não deferisse o seu pedido, seria aberto um precedente para que a Marinha usasse o caso para barrar a entrada de outras pessoas trans na instituição. “Ganhei a primeira batalha.”
Fonte: Wagner Advogados