Confira análise do consultor legislativo e advogado, Luiz Alberto dos Santos

O final da sessão legislativa do Congresso Nacional, em 22 de dezembro de 2022, trouxe várias surpresas. Para alguns, um “presente de Natal”; para outros, uma sensação de insegurança, frente às expectativas para o ano que se inicia.

Além da acelerada apreciação pela Câmara dos Deputados e Senado Federal (esse, em 4 votações, dadas as alterações promovidas pela Câmara) da Proposta de Emenda à Constituição nº 32, de 2022 –-, que permitirá não somente o pagamento do Auxílio Brasil ou Bolsa Família nos valores prometidos pelo Presidente Lula, mas, também outras despesas em áreas essenciais, e com a “licença para gastar”, superando limites como regra de ouro e teto de gastos da EC 95/2016, foram também aprovados nada menos do que 9 proposições legislativas concedendo diferentes reajustes de remuneração para servidores e membros de Poder.

Objetivamente, foram aprovados reajustes, a serem concedidos de forma “parcelada”, em alguns casos até 2026, para todos os agentes públicos federais, exceto, por enquanto, os servidores civis do Poder Executivo, e militares das Forças Armadas, e, ainda, policiais civis do DF e Policiais Militares do DF, cujos reajustes também dependem de aprovação do Congresso Nacional.

A tabela a seguir demonstra os percentuais e datas de efeitos financeiros dos reajustes aprovados:

Entre todas as normas aprovadas, apenas o Projeto de Decreto Legislativo nº 471, de 2022, apresentado pela Mesa Diretora da Câmara apenas em 20.12.2022 e votado, no mesmo dia, em ambas as Casas do Congresso, já se converteu em norma jurídica: o Decreto Legislativo nº 172/2022, publicado no Diário Oficial de 22.12.2022.

Essa publicação se deu em razão de interpretação literal do art. 21, IV, da Lei de Responsabilidade Fiscal, que considera nula “de pleno direito” a aprovação, a edição ou a sanção, por Chefe do Poder Executivo, por Presidente e demais membros da Mesa ou órgão decisório equivalente do Poder Legislativo, por Presidente de Tribunal do Poder Judiciário e pelo Chefe do Ministério Público, da União e dos Estados, de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público, ou a edição de ato, por esses agentes, para nomeação de aprovados em concurso público, quando “resultar em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo”.

Como a norma em questão refere-se a “carreiras do setor público”, adotou-se o entendimento de que o Decreto Legislativo, que produzirá efeitos a partir de 1º de janeiro, não enfrentava óbice à sua promulgação, pois não se dirige a “carreiras”, mas a membros do Poder Legislativo.

Contudo, essa interpretação ignorou o disposto no inciso III do mesmo art. 21, que também considera nulo o ato “o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20.” Ora, o PDL 471/22 prevê parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco; e o § 1º do art. 21 da LRF prevê que a restrição prevista no referido inciso III deve ser aplicada “inclusive durante o período de recondução ou reeleição para o cargo de titular do Poder ou órgão autônomo”.

O desrespeito à Constituição ou à LRF, quando um interesse maior se agigante, não é novidade no País. Lamentavelmente, continuamos a ver os que deveriam, acima de tudo, defender a Constituição, aplicá-la seletivamente, conforme o interesse do momento. E, se não for possível, aprova-se a toque de caixa uma Emenda Constitucional, nem sempre pelos motivos mais nobres.

É o que ocorre no momento em que se aprovam reajustes a serem implementados ao longo dos próximos 3 anos, com percentuais prefinidos, mas que não repõem as perdas inflacionárias desde 2017 ou 2019, ou de períodos anteriores, e sequer asseguram a proteção do poder de compra frente à inflação futura.

A sanção dos projetos de lei aprovados acha-se, por ora, em “banho maria”, pois somente poderá ocorrer a partir de 1º de janeiro de 2023, dada a própria limitação do art. 21, IV da LRF, que veda a sanção de normas que impliquem aumentos da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20, mas, também, como já dito, a própria a sanção de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público, quando “resultar em aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo” ou “resultar em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo”.

Mas, tão logo assuma o cargo em 1º de janeiro de 2023, o Presidente Lula ver-se-á premido a promover a sanção dos projetos de lei aprovados, com vigência prevista a partir de 1º de fevereiro de 2023.

Para atender aos reajustes já aprovados, o Anexo V da Lei Orçamentária Anual para 2023 – que também aguarda a sanção presidencial – prevê as seguintes dotações:

Para o Poder Executivo, porém, inexiste, até o momento, projeto de lei em tramitação, mas o Anexo V do PLOA aprovado prevê a seguinte dotação para essa finalidade:

A soma de todas as proposições legislativas autorizadas a produzirem aumentos na despesa com pessoal e encargos com reajustes, nos termos do art. 116, IV[1] da Lei nº 14.436, de 9 de agosto de 2022 (LDO), inclusive para o Poder Executivo, alcança, portanto, R$ 13,719 bilhões de despesa primária, mais R$ 1,231 bilhões para despesas financeiras com a contribuição previdenciária patronal, totalizando R$ 14,95 bilhões, ao longo de 2023.

A esses valores, somam-se os montantes autorizados de acréscimo na despesa, reservados a provimentos de cargos e funções públicas, que totalizam outros R$ 141,8 milhões no Poder Legislativo, R$ 852,4 milhões no Poder Judiciário, R$ 37,4 milhões no MPU, R$ 7,7 milhões na Defensoria Pública e R$ 3,15 bilhões no Poder Executivo, incluindo pessoal militar. No total, tem-se a autorização para acréscimo de R$ 4,19 bilhões, decorrentes de provimentos de cargos e funções, em 2023.

Embora esse impacto previsto para 2023, como um todo, represente uma parcela pequena do orçamento total, e um acréscimo de apenas 5,24% em relação à despesa total autorizada para 2022 pela Lei Orçamentária Anual, o montante total de R$ 19,139 bilhões é apontado, pelos fiscalistas de plantão, como um excesso, e não faltaram aqueles que, durante a apreciação das proposições, tentaram impedir a sua aprovação.

Contudo, há questões a examinar.

Primeiramente, mais uma vez constata-se a burla à garantia constitucional da revisão geral anual.

Essa garantia, prevista no art. 37, X da Constituição, não é cumprida na esfera da União desde 2003. São, assim, quase 20 anos de completo desrespeito à Carta Magna e à própria Lei que rege essa garantia. Segundo a Lei nº 10.331, de 18 de dezembro de 2001, em janeiro de cada ano deveria ser concedida a revisão, por lei específica, que definiria o percentual, desde que comprovada “disponibilidade financeira que configure capacidade de pagamento pelo governo, preservados os compromissos relativos a investimentos e despesas continuadas nas áreas prioritárias de interesse econômico e social” e “compatibilidade com a evolução nominal e real das remunerações no mercado de trabalho”, além do atendimento aos limites para despesa com pessoal de que tratam o art. 169 da Constituição e a Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000.

Em vez disso, o Congresso, no apagar das luzes, aprova reajustes lineares, para diferentes setores, em percentual e datas uniformes (6%, a partir de fevereiro de 2023), para os servidores, mas em percentual e datas distintas, para os membros de Poder.

Embora representem uma “vitória” frente ao fato de o Governo Bolsonaro haver, simplesmente, ignorado a necessidade da reposição de perdas ao longo de todo seu mandato para os servidores civis, os reajustes aprovados não repõem as perdas ocorridas desde janeiro de 2019. Considerada a inflação projetada para o ano de 2022, atingirá, apenas no mandato presidencial que se encerra em 31.12.2022, segundo a estimativa do Boletim Focus, do Banco Central, de 16.12.22, 26,9%. Para aqueles cujo último reajuste foi em janeiro de 2017, a perda acumulada atingirá 35,53%. Um reajuste de 6%, a partir de fevereiro de 2023, portanto, acha-se muito distante do necessário para cumprir o mandamento constitucional da revisão geral e assegurar a irredutibilidade das remunerações dos servidores. E, como os reajustes concedidos entre janeiro de 2017 e janeiro de 2019 já foram, também, insuficientes para repor perdas anteriores, alguns setores chegarão, ao final de 2022, com perdas de mais de 40% em suas remunerações.

No caso do Poder Executivo, onde a situação é mais complexa e, para metade dos servidores públicos civis, não foi concedido nenhum reajuste em 2018 e 2019, sequer é possível, ainda, afirmar que haverá reajuste a vigorar a partir de 1º de fevereiro de 2023, ou o seu percentual.

Há que se ressaltar que o Anexo V da LOA aprovada não autoriza a extensão ou concessão de qualquer reajuste para os militares. O descritor do item 5.1 do Item II do Anexo V da LOA aprovada prevê um limite “destinado ao atendimento do PDL 471, de 2022, e de PLs relativos a concessão de vantagens, reestruturação e/ou aumento linear de remuneração de cargos, funções e carreiras civis no âmbito do Poder Executivo e das forças de Segurança Pública do Distrito Federal”. A redação não permite que o limite ali previsto, no total de R$ 11,477 bilhões, seja empregado para reajuste de soldos e gratificações de militares das Forças Armadas. O item 5.2 prevê um limite reservado para “aumento da remuneração dos cargos das carreiras da Agência Nacional de Mineração”, de R$ 59,2 milhões, mas apenas isso.

Caso não seja concedido reajuste aos militares, o montante autorizado para 2023 (R$ 11,477) seria suficiente para que os servidores civis tenham suas remunerações reajustadas em 6% a partir de fevereiro de 2023, com um impacto de aproximadamente R$ 11,7 bilhões.

Contudo, caso venha a ser concedido o mesmo reajuste aos militares – impactando a folha de pagamentos total de ativos e inativos da União em 2023 a partir de fevereiro – o acréscimo na despesa seria da ordem de 5,5%, o que implicaria em R$ 15,8 bilhões de acréscimo total na despesa, apenas com reajustes. Assim, além de não estar previsto esse reajuste para os militares no Anexo V da LOA aprovada, a dotação orçamentária para reajustes também é insuficiente para esse fim.

Há, porém, uma “reserva de contingência” de R$ 3,2 bilhões para despesas com pessoal, alocada ao Ministério da Economia, e que ali foi colocada pelo Relator-Geral do PLOA 2023, como “despesa com fonte condicionada” à aprovação da Emenda Constitucional nº 126, de 2022. Essa dotação, como se percebe, seria um pouco menor do que a necessária para que também os militares tenham reajuste em 2023.

Contudo, para que o reajuste seja aplicado em fevereiro de 2023, o Executivo precisaria editar, ainda em janeiro de 2023, uma medida provisória para atender aos seus servidores civis no mesmo percentual previsto para o Legislativo e Judiciário.

Caso não o faça, mas envie projeto de lei, esse projeto somente seria apreciado em fevereiro de 2023 pelo Congresso eleito em 2022, e, na melhor das hipóteses, a sua aprovação ocorreria a tempo de produzir efeitos a partir da segunda quinzena do mês de fevereiro.

Caso o Executivo opte por um reajuste de 6% a vigorar a partir de abril – quando os Ministros de Estado terão reajuste de 5% – a despesa total anualizada com servidores civis cairia para cerca de R$ 9,8 bilhões; somando-se o mesmo reajuste para os militares, o impacto seria de pelo menos R$ 13,3 bilhões.

Em qualquer cenário, há, portanto, dotação orçamentária disponível, considerada a “reserva de contingência”, mas há “tecnicalidades” a serem respeitadas que poderão trazer algumas inquietações às áreas técnicas do Executivo.

A Emenda Constitucional nº 126, de 2022, promulgada em 21 de dezembro, trouxe novos e importantes elementos para essa “equação”. Foi ampliado o “teto” de despesas primárias em 2023 em R$ 145 bilhões, os quais não serão consideradas para fins de verificação do cumprimento da meta de resultado primário nem sujeitos ao disposto no inciso III do caput do art. 167 da Constituição Federal, que veda financiamento de despesa corrente mediante operações financeiras (regra de ouro).

Esse acréscimo ao “teto” em 2023 será destinado, essencialmente, ao aumento de dotações orçamentárias para assistência social, previdência, saúde e educação, mas a EC 126 autorizou que seja destinado ao atendimento de solicitações das comissões permanentes do Congresso Nacional ou de suas Casas, e que o relator-geral do Projeto de Lei Orçamentária de 2023 apresentasse emendas para a ampliação de dotações orçamentárias. Entre essas emendas, encontra-se a emenda que acresceu R$ 3,1 bilhões à despesa com pessoal, como “reserva de contingência”.

E, em 2023, as despesas com Bolsa Família/Auxílio brasil e com o programa auxílio Gás dos Brasileiros, ficam dispensadas da observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental, inclusive quanto à necessidade de compensação. Assim, essas despesas poderão ser acrescidas, no limite necessário, sem necessidade de observância da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas, apenas, o limite de despesas primárias totais, já acrescido de R$ 145 bilhões em 2023.

Assim, o ano que se inicia traz a necessidade de que os servidores públicos mantenham-se não apenas alertas – especialmente, no Poder Executivo – para que os projetos aprovados sejam sancionados e implementados, e os reajustes se materializem, e sejam cumpridas as suas expectativas, no curto prazo.

Contudo, o fato de que leis fixem, a priori, reajustes em 2024 e 2025 não pode ser suficiente para que “enfiem a viola no saco” e abram mão de buscar a recomposição das perdas inflacionárias passadas e a revalorização remuneratória necessária ao resgate da dignidade do serviço público, que não somente foi ignorada pelo governo que se encerra, mas vilipendiada pelas constantes medidas de assédio moral, financeiro, político e funcional.

[1] Art. 116.Para atendimento ao disposto no inciso II do § 1º do art. 169 da Constituição, observados as disposições do inciso I do referido parágrafo, os limites estabelecidos na Lei Complementar nº 101, de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal, e as condições estabelecidas no art. 113 desta Lei, fica autorizada a regulamentação de gratificação estabelecida por lei específica e: (…) IV – a criação de cargos, funções e gratificações, o provimento de civis ou militares, o aumento de despesas com pessoal relativas à concessão de quaisquer vantagens, aumentos de remuneração e alterações de estrutura de carreiras, até o montante das quantidades e dos limites orçamentários para o exercício e para a despesa anualizada constantes de anexo específico da Lei Orçamentária de 2023, cujos valores deverão constar de programação orçamentária específica e ser compatíveis com os limites estabelecidos na Lei Complementar nº 101, de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal, não abrangidos nos demais incisos do caput deste artigo.

LUIZ ALBERTO DOS SANTOS É consultor legislativo e advogado

Fonte: Congresso em Foco / Foto: Marcelo Casal/Agência Brasil

Tags:
    direito, expectativas, novo governo, servidores,
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