Desafios no curto prazo incluem recuperação de áreas reduzidas; no longo, flexibilidade de carreiras
O setor público para funcionar bem hoje e no futuro depende da reposição de servidores em áreas encolhidas nos últimos anos, como meio ambiente, cultura e diversidade. Ao mesmo tempo, precisa se planejar para substituir empregos de baixa complexidade afetados pela automação e flexibilizar funções ligadas à prestação de serviços.
Sem servidores, o Estado tem dificuldade em implementar políticas públicas. Foi o que aconteceu com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) na avaliação de Suely Araújo, ex-presidente da autarquia e professora da UnB (Universidade de Brasília).
Esta reportagem faz parte da série Profissional Público do Futuro, parceria entre a Folha e a República.org, que debate oito temas em torno da modernização do serviço público no Brasil.
O Ibama empregava 5.495 servidores em 2002, mas o número caiu para 2.544 em 2021, segundo dados utilizados pelo grupo de transição do governo, do qual Suely participou.
Para a pesquisadora, o déficit de pessoal impacta atividades do órgão, como fiscalização de agrotóxicos, combate ao desmatamento e licenciamento ambiental.
O número de fiscais nomeados por portaria —classe de servidor que faz curso para atuar na prevenção de crimes ambientais— também diminuiu. O Ibama já teve 1.600 desses funcionários, mas hoje são apenas 700.
“Há correspondência direta entre a diminuição do número de fiscais ao longo dos anos e o aumento no desmatamento,” diz Suely.
Segundo Francesco Bonelli, pesquisador do IFBA (Instituto Federal da Bahia), o problema ultrapassa o déficit numérico porque envolve a falta de estrutura na carreira desses servidores.
“Eles são agentes ambientais federais só com base em uma portaria, que pode ser revogada”, afirma o pesquisador. A fiscalização fica, então, ao sabor dos ventos políticos, travando a continuidade de estratégias ambientais que funcionam.
Déficit semelhante acontece na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), agora no Ministério dos Povos Indígenas. Em 2012, havia 2.587 funcionários no quadro permanente do órgão, mas o número caiu para 1.343 dez anos depois.
A fundação é responsável pelos processos de demarcação de terras indígenas, que foram congelados durante o governo Bolsonaro. A política de demarcações, porém, deve ser retomada com Lula (PT) e a ministra Sônia Guajajara (PSOL).
A cultura é outra área com demandas sociais reprimidas na qual faltam funcionários. Na Ancine (Agência Nacional do Cinema), por exemplo, apesar de o número de vagas ter aumentado nos últimos dez anos —de 272 servidores em 2012 para 392 hoje—, a demanda de trabalho aumentou mais do que a capacidade do quadro técnico.
Essa é a avaliação de Kátia Morais, professora adjunta da Uneb (Universidade do Estado da Bahia) e pesquisadora da área de economia política do audiovisual.
Desde a fundação, a Ancine acumula funções tanto de fomento quanto de fiscalização, com atividades que vão do financiamento de reformas de cinemas à fiscalização de cotas na televisão.
“Isso gerou sobrecarga nos servidores”, diz Kátia. A pesquisadora considera importante as políticas públicas da agência porque não só descentralizaram a produção do audiovisual do eixo Rio-São Paulo, mas aumentaram a participação de grupos sub-representados.
MUDANÇAS TECNOLÓGICAS PEDEM ATUALIZAÇÃO
Se no curto prazo as demandas sociais pedem reposição de cargos, no longo, a administração pública precisa se adaptar às mudanças tecnológicas.
De acordo com estudo dos pesquisadores Leonardo Monasterio e Willian Adamczyk, financiado pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública), 20% das vagas do serviço público estão suscetíveis à digitalização.
A maioria desses postos de trabalho fica no Ministério da Educação. Cargos como assistentes administrativos, auxiliares de escritórios e de bibliotecas têm mais chance de serem substituídos por robôs, automação e inteligência artificial nas próximas décadas.
“São vagas de atividades-meio, que não são de atendimento direto ao público”, afirma Monasterio, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). No mundo todo, essas funções tiveram uma demanda menor.
Se o setor público não se adaptar, diz Monasterio, ele vai ficar parado no tempo. Para o pesquisador, o grande benefício da automação aparece no ganho em produtividade, que se traduz em melhoria de serviços.
Essa adaptação, porém, não provoca discussões sobre demitir servidores. “É sobre prepará-los para lidar com essas tecnologias e oferecer a possibilidade de mudar de carreira.”
Para Wagner Lenhart, ex-secretário de gestão e desempenho de pessoal do Ministério da Economia e diretor do Banrisul, é difícil readequar a atividade desse servidor, mesmo com as mudanças tecnológicas, por causa do desvio de função. “Se ele foi contratado para certa atividade, não se pode colocá-lo para fazer outra.”
Essa rigidez dificulta uma requalificação que seria positiva tanto para o servidor quanto para o governo, continua Lenhart. “Você teria condição de investir para que ele se requalifique, atuando até mesmo nos desafios da digitalização”.
Na avaliação de Evelyn Levy, doutora em gestão pública, nem todos os servidores públicos precisam ser estatutários —categoria do funcionalismo contratada por concurso que tem benefícios como a estabilidade.
“Esse tipo de contrato deveria ser restrito a funções típicas do Estado, que formulam, fiscalizam e implementam políticas públicas.”
Segundo a especialista, a estabilidade serve para casos como o do servidor Luís Ricardo Miranda, que denunciou irregularidades em contratos de vacina do Ministério da Saúde em 2021.
Com servidores estatutários em funções de serviço, como médicos, o Estado demora mais para se adaptar a novas tecnologias ou agendas de diferentes governos, afirma Evelyn.
“São carreiras com atividades rígidas”, diz. “Flexibilidade deveria ser a palavra-chave para o setor público hoje”.
A especialista em gestão pública afirma que um contrato por tempo determinado é uma solução. Com processo seletivo simplificado, servidores temporários são contratados de forma mais rápida, o que permite à administração pública seguir as tendências e emergências da população.
Na legislação federal, esses contratos podem durar de seis meses a seis anos. Já nos estados e municípios, há muita variação e pouca clareza sobre quais direitos esses servidores têm e quais atividades podem executar.
Segundo a especialista, por essa insegurança jurídica, alguns servidores temporários ficaram 20 anos sem benefícios, como acesso ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), situação revertida pelo Judiciário. Por isso, na visão de Evelyn, o desafio é aprimorar as leis para protegê-los.
MAPEANDO NECESSIDADES
Em nota enviada no final do governo Bolsonaro, o Ibama disse que nomeou 568 novos servidores no último concurso.
Com mudanças no regimento, agora 93% dos cargos comissionados passaram a ser ocupados por servidores de carreira, diz a autarquia. Procuradas, as atuais gestões não responderam.
Já a Ancine afirma que mapeia as necessidades de trabalho, que são supridas pelo empenho dos servidores e forças tarefas. “Um diagnóstico das necessidades de recursos humanos para fazer frente aos novos desafios da agência será apresentado ao governo e Ministério da Cultura.”
Fonte: Folha de São Paulo