Nos porões do prédio que fica no número 921 da rua Tutoia, em São Paulo, ficavam as celas onde presos políticos sofreram as mais bárbaras e vis torturas possíveis durante a ditadura militar. Era ali que funcionava a sede paulista do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).

Os presos políticos que passaram por esse cenário de terror recordam-se de um homem de cabelos longos com um grande crucifixo no peito que ostentava com o hábito dos anos 1970 de usar a camisa com boa parte dos botões abertos. Com os cabelos longos e o crucifixo, ele entrava nas celas e dizia: “Eu sou Deus. Eu sou Jesus Cristo. Eu tenho o poder da vida e da morte”. O horror que acontecia em seguida é indescritível.

O homem de cabelos longos e crucifixo chama-se Dirceu Gravina. Era conhecido no DOI-Codi como Jesus Cristo ou JC. Ele é um dos réus condenados em sentença proferida na última quarta-feira (18) pela juíza Diana Brunstein da 7ª Vara Cível Federal de São Paulo. Além dele, são réus também na ação Aparecido Laertes Calandra – ou Doutor Ubirajara – e David dos Santos Araújo – Capitão Lisboa. Eles estão envolvidos na tortura e morte de vítimas da ditadura como o jornalista Vladimir Herzog e o metalúrgico Manoel Fiel Filho. Pela decisão proferida pela juíza Diana Brunstein, estão condenados a pagar uma indenização de R$ 1 milhão à “sociedade brasileira” por suas ações durante a ditadura militar.

A decisão individualiza as condutas dos torturadores ao condená-los a indenizar a sociedade pelos crimes que cometeram nos porões da ditadura. “É uma decisão importantíssima”, comemora o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, um dos autores da ação. “O primeiro ponto extremamente importante é que a sentença declara que os três foram torturadores, responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos. A partir de agora, essa é uma afirmação judicial. E é a primeira vez que isso acontece em uma Ação Civil Pública”.

A condenação dos três torturadores é decorrência de um outro julgamento ocorrido em 2020 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Originalmente, a ação tinha sido movida pelos dois procuradores em 2009, e, na primeira ocasião, houve uma derrota, na qual a Justiça considerou que os pedidos feitos não eram factíveis. Os procuradores recorreram ao STJ, que reverteu a decisão, dizendo que, em tese, todos os pedidos eram cabíveis, que os torturadores eram, sim, responsáveis pelos danos causados às vítimas e à sociedade e deveriam pagar por isso.

Com a jurisprudência nova a partir do acórdão do STJ, os procuradores retomaram a ação, que resultou agora na condenação determinada por Diana Brunstein. “A decisão da juíza, e com o valor que ela determinou, demonstra que essas três pessoas devem uma reparação à sociedade brasileira pelos danos morais que causaram. Isso é extremamente importante”, considera Weichert.

Ao longo do tempo, foram ouvidas diversas testemunhas na ação, para reforçar a responsabilidade dos três torturadores. Entre as testemunhas, que também sofreram torturas na rua Tutóia, estão o assessor do Ministério dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e o ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Vannuchi.

Em uma longa decisão, Diana Brunstein julga improcedentes pedidos do Ministério Público para que os réus pagassem indenizações ás famílias das suas vítimas. Ela lembra que tais indenizações já vêm sendo pagas pela União desde que houve a decisão de reparar os crimes da ditadura. Ela, porém, define, então que, responsáveis diretos pelos crimes, eles devem fazer regressar aos cofres públicos uma indenização pelos danos que causaram à sociedade.

Danos coletivos

“Julgo procedente (…) o pedido relativo à condenação dos corréus a repararem os danos morais coletivos sofridos pela sociedade brasileira, motivo pelo qual, condeno cada um deles ao pagamento da quantia de R$ 1.000,000,00 (um milhão de reais), a ser revertida ao Fundo de Direitos Difusos”, decidiu a juíza.

Na Ação Civil Pública, o Ministério Público Federal pedia que Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo, Dirceu Gravina, a União Federal e o Estado de São Paulo pagassem indenizações às famílias de Hiroaki Torigoe (morto em 1972 depois de preso e torturado), Carlos Nicolau Danielli (também morto em 1972 depois de preso e torturado), Joaquim Alencar de Seixas (torturado e morto em 1971), Aluisio Palhano Pedreira Ferreira (torturado e morto também em 1971) e Yoshitani Fujimori (torturado e morto em 1970), além de Herzog (preso, torturado e morto em 1975) e Fiel Filho (torturado e morto em 1976).

No total, tais indenizações somariam R$ 871,5 mil, “deduzindo-se, na fase de execução, eventuais valores que tenham sido satisfeitos pelos devedores solidários Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel”. O coronel Brilhante Ustra foi o chefe do DOI-Codi do II Exército. O coronel Audir dos Santos Maciel, também conhecido pelo codinome de Doutor Silva, foi o chefe do DOI-Codi de São Paulo. A ação do Ministério Público também pede responsabilizações da União e do governo do Estado de São Paulo pelos crimes que aconteciam nos porões da rua Tutoia.

Sem anistia

Na ação, o Ministério Público aponta para a “imprescritibilidade de crimes contra a humanidade, das ações declaratórias e da reparação ao patrimônio público”. Alega ainda que a Lei da Anistia “não mencionou qualquer anistia para obrigações civis decorrentes da prática de atos ilícitos”.

A juíza, porém, julgou improcedente a maior parte dos pedidos do Ministério Público. Primeiro, por considerar que a União já pagou indenizações às famílias das vítimas. Para ela, é possível “a responsabilização do Estado pelo pagamento de indenizações aos particulares (vítimas e seus familiares)”. Mas, no seu entendimento, “não há como direcionar com precisão os valores despendidos a cada corréu especificamente, não há como precisar o quanto cada conduta está presente na causa das indenizações de cunho reparatório”.

A juíza, porém, julga “procedente” que os torturadores sejam condenados a reparar “os danos morais coletivos sofridos pela sociedade brasileira”. E condena, então, cada um deles a pagar R$ 1 milhão. Os valores serão revertidos ao Fundo de Direitos Difusos. O Fundo de Defesa de Direitos Difusos tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos.

“A grande importância da decisão é a conclusão de que a sociedade brasileira sofreu danos pela introdução da tortura como uma prática de Estado”, avalia Weichert. “Isso dá ensejo, então, à condenação por danos morais coletivos”.

A ação, no entanto, fazia outros pedidos, que não foram acatados pela juíza. E que serão agora objeto de recurso. Weichert entende que o acórdão do STJ de 2020 já tinha apontado que os demais pedidos de reparação às famílias e outros no sentido da responsabilização individual dos torturadores eram cabíveis. “O STJ avaliou isso em tese, não no caso concreto”, ressalva o procurador. “A sentença do STJ já dizia que era possível o que pedimos, como cassação de aposentadorias, que não havia prescrição dos crimes. Me parece que os óbices jurídicos que a juíza agora levantou já tinham sido superados pelo STJ”. Agora, haverá recurso, então, com relação aos demais pedidos da ação. “De qualquer modo, é um precedente fundamental para que o Brasil promova de fato justiça sobre os crimes cometidos pela ditadura”.

Na década de 1970, Dirceu Gravina intitulava-se Jesus Cristo e, junto com seus colegas, promovia a morte no DOI-Codi da rua Tutoia. A decisão tomada agora pela juíza Diana Brunstein talvez possa fazer com que ele e os demais torturadores venham agora, com as indenizações que pagarão, ajudar a promover a vida.

Fonte: Congresso em Foco

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